O livro de Itamar Vieira Junior, Torto arado, foi recentemente lançado em inglês pela Verso Fiction após sua primeira publicação em Portugal, onde ganhou o Prêmio LeYa, e posterior publicação no Brasil pela Todavia, onde ganhou o Prêmio Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa, e o Prêmio Jabuti. O livro inundou minhas redes sociais, trazido a mim por amigos brasileiros, familiares, veículos literários, veículos de notícias, o New York Times e até campanhas presidenciais brasileiras. Eu li e adorei antes mesmo de saber que haveria uma tradução para o inglês. Quando descobri, corri para tentar fazer esta entrevista e fiquei grato pela oportunidade de ter uma conversa agradável e instigante com um escritor agradável e instigante.

Torto arado é um livro poderoso e penetrante que acompanha a vida de duas irmãs, sua família e um espírito no sertão da Bahia, Brasil. As irmãs, que usam a mesma voz depois que um acidente tira a capacidade de falar de uma delas, crescem e seguem seus próprios caminhos de vida enfrentando a pobreza, a injustiça racial e a ameaça de serem removidas da terra à qual estão profundamente ligadas.

Itamar Vieira Junior e eu tivemos uma conversa maravilhosa em português online sobre sua jornada como escritor, as definições e o conceito de raça no Brasil e nos Estados Unidos, a luta pela democracia e, claro, seu lindo livro. Esta entrevista foi condensada, editada e traduzida para o inglês.


David Martinez: Como começou a sua vida literária? 

Itamar Vieira Junior: Foi natural. Quando eu aprendi a ler e escrever, eu já comecei a ler histórias. Foi muito incentivado pela escola. Meu avô e meu pai às vezes compravam quadrinhos e aquilo foi me engajando em leituras e a partir dali eu comecei a ler com mais frequência. E à medida que eu ia crescendo, eu ia lendo e escrevia também. Sentia vontade de escrever. Acho que foi a primeira profissão, embora que as pessoas da minha classe social achavam que escritor era coisa de elites. E por isso eu segui outro caminho. Eu fui ser professor, me formei em Geografia, mas sempre continuei escrevendo. Só quando eu já estava estabilizado do ponto de vista profissional é que eu comecei a escrever com mais frequência. E aí, de fato, comecei a publicar. Meu primeiro livro, que eu considero meu primeiro livro, foi publicado em 2012, há mais de dez anos. De lá para cá eu publiquei e agora saiu o quarto livro. 

Para mim, a escrita começou quase ao mesmo tempo em que eu aprendi a ler. Eu fiquei bem impressionado com leituras infanto juvenis de autores brasileiros. Eu estou pensando no Marcos Rey também pensando na Lúcia Machado de Almeida, autores que me despertaram interesse pela escrita, pelas histórias que eles contavam. Depois que eu terminava a leitura, eu sentia vontade de reviver aquilo de uma outra maneira, que era criando histórias. Então acho que eles foram fundamentais para a minha formação como leitor e escritor. 

Como foi o processo de tradução para o inglês? 

Eu fiz um trabalho muito intenso com o Johnny [Lorenz]. Passamos mais de um ano. O Johnny é muito preciosista, muito minucioso. Ele é muito perfeccionista. Acredito que ele fez um bom trabalho, pelo método dele, pelo engajamento dele, com o procedimento dele com que eu via. Eu acho que deve ter ficado muito bom. Às vezes a gente passava horas conversando sobre isso pelo chat. A gente trocava muito e-mail também. Trocamos muita bibliografia também para ele conhecer um pouco do Jarê, um pouco do panorama dessa região, da história do que está narrado ali no romance. 

Hoje o Torto arado é um grande sucesso no Brasil, mas foi publicado primeiro em Portugal. 

Foi publicado em Portugal porque eu não tinha editora no Brasil e os meus livros anteriores tinham saído para editoras independentes, pequenas, e não circulavam. Não chegavam às livrarias. E eu comecei a dizer agora eu vou escrever um romance, eu vou publicar, eu vou tentar publicá-lo numa outra editora. Mas eu não cheguei a mandar um romance para editoras porque eu sempre acho que editora é uma coisa meio carta marcada. Eles não leem. Para você chegar a uma editora, você precisa ser amigo de alguém da editora e amigo do editor. Ou seja, eu nem arrisquei. Para mim restou, quando eu tinha o livro pronto, procurar concursos para livros inéditos. Tinha alguns no Brasil, mas tinha passado o prazo já, então eu não podia me inscrever. E aí eu decidi mandar para o primeiro que apareceu, que por coincidência foi o Prêmio LeYa em Portugal. O Prêmio LeYa é um prêmio voltado para a Comunidade de Língua Portuguesa e dado por um grande grupo editorial que é o Grupo LeYa e eu mandei. Mas eu confesso que não tinha expectativas até que meses depois, acho que seis meses depois, eu recebi o contato dizendo que o livro tinha vencido o prêmio. E aí eu fui tendo noção do que era o prêmio. Embora Portugal seja um país pequeno, o prêmio tinha um grande prestígio. A imprensa, TV, rádio, jornais, revistas e as pessoas tinham interesse na história, na história do autor, na história que estava sendo publicada. O livro foi publicado em Portugal em fevereiro de 2019, e aí depois, no mês de agosto, foi publicado no Brasil pela Editora Todavia. Mas precisou sair lá fora para que pessoas daqui se interessassem e publicassem. 

É esse conceito do complexo de vira-lata que existe no Brasil. Essa ideia de que tudo que vem de fora do Brasil é melhor do que tudo que tem origem no Brasil. Só depois que fez um grande sucesso fora que o povo ficou mais interessado. E isso vem das épocas coloniais.

Eu acho que continua a ser assim até hoje. Por exemplo, pelo que li, o livro está perto da marca de 1 milhão de exemplares vendidos e eu acho que quanto mais se fala que o livro vende, aí mais críticas aparecem. O Brasil é um caso à parte com esse complexo de vira lata. Acho que colonialismo hoje é um tema em vogue. E quando falamos de colonialismo parece que é uma coisa que está lá no passado, mas não é. Acho que faz parte da nossa vida de uma maneira muito marcante, muito presente ainda hoje. São as estruturas, nossa maneira de habitar o mundo e as relações sociais que foram moldadas naquela época. Claro que não são imutáveis. Elas foram se modificando, mas ainda são essencialmente coloniais. Então isso é muito sintomático mesmo.

Isso me faz lembrar muito de Salomão no seu livro. Ele não é branco, mas quer ser e dá para ver nas ações dele. Me faz pensar que aqui nos Estados Unidos, e aí no Brasil também, a gente dá muita importância a cultura europeia mesmo estando aqui em terras indígenas e esses países são construídos por, e feitos de, povos de vários lugares. 

No Brasil ainda é muito forte. O Brasil é parecido com os Estados Unidos nesse sentido porque é um país também que tem muitos imigrantes. Depois da abolição da escravatura, mesmo um pouco antes, recebeu um contingente enorme de alemães, italianos, poloneses, portugueses, espanhóis. Muitos asiáticos também, principalmente japoneses. Tudo isso influencia nessa predominância. E até hoje no Brasil, as universidades, a ciência, todas elas são muito ancoradas em paradigmas europeus. E é muito complexo até para você estudar colonialismo, ou fenômenos locais. Muita gente ainda utiliza um corpo teórico, um repertório, que ainda está muito ligado ao conhecimento e à razão europeia. 

O Torto arado enfatiza a memória negra no Brasil. Questiona o conceito de identidade cultural e racial. Como você se identifica com tudo isso? Eu li em uma outra entrevista que você fez um teste de DNA. 

Sim, isso já tem alguns anos. No Brasil tem um apagamento de toda essa memória negra e indígena. Então eu sei que a família da minha mãe tem uma parte de imigrantes portugueses que chegaram no começo do século XX. E aí, sobre essa família em particular, a gente tinha muitos documentos, fotografias, coisas sobre a história deles. Sobre a família do meu pai, não tinha quase história nenhuma e a história se apaga com poucas gerações. E aí eu fui atrás do teste só para ter uma ideia porque a África é um continente, não é um país. E queria ter uma ideia de onde meus antepassados tinham saído. Foi com um teste que eu tive a noção de que eles tinham saída da Costa da Mina, que fica entre o Benin e a Nigéria, então certamente eram grupos étnicos de lá. Foi importante porque eu acho que restitui um pouco da memória da história de que foi apagada de uma maneira brutal. 

Eu li outro dia que mais de 56% dos brasileiros se identificam como negros. 

Nessa categoria utilizada no Censo, negro inclui pessoas pretas, que nos Estados Unidos chamam pretos, que já é uma categoria diferente. Nos Estados Unidos negro é uma palavra ofensiva, mas no Brasil não tem problema, e essa categoria se subdivide em cor. Tem os retintos que chamam de pretos nos Estados Unidos e os pardos que são os miscigenados, os mestiços. Então essa categoria é englobada nessa grande categoria de pardos e pretos e que é a categoria negro. E quando se soma as duas dá a mais de 50% da população.

Esse conceito de miscigenação não é somente sobre a cor da pele, mas também inclui culturas e religiões. No Torto arado fala muito de Jarê, que é parecida com Candomblé, mas não é a mesma coisa. Quais são as diferenças?

Jarê seria uma derivação do Candomblé, uma espécie de Candomblé mestiço, porque ali também tem elementos do Catolicismo. Tem também elementos do Xamanismo, das práticas religiosas indígenas. Então o Jarê é um sistema de crenças que só existe na Chapada Diamantina. Não é praticado em outra região do Brasil. Ele é um sistema de crenças baseado na cura do corpo e do espírito daqueles que precisam dessa prática religiosa. Todo etos, toda a sabedoria, toda ontologia da própria prática estão muito concentradas na figura do curador, da curadora. Pode ser homem, pode ser mulher. No caso de Torto arado, é o Zeca Chapéu Grande, que foi inspirado em muitos curadores que eu conheci ou que eu conheci a história deles. A função dele é importante numa localidade onde não existiam médicos, então eram práticas de conhecimento, de ervas, de chá e de raízes. Então a prática de Jarê é muito centrada na figura do curador ou da curadora.

Outra realidade apresentada no Torto arado é relacionada a um Brasil subdesenvolvido, sem recursos básicos como a eletricidade. Até pouco tempo atrás havia muitos lugares que não tinham energia elétrica. 

Eu mesmo conheci comunidades que no começo dos anos 2000 foi que chegou a energia elétrica e ainda hoje são pouquíssimas as que não tem por algum motivo ou outro. Mas antes dos anos 2000 era muito comum não ter. É porque no primeiro governo Lula, que começou em 2003, teve um grande programa que se chamava Luz para Todos, com o objetivo de desenvolver o país, de levar a energia elétrica as localidades. Era um programa que tinha muitos recursos para instalar energia elétrica. Eu fui trabalhar dois anos depois, em 2005, no Maranhão, e via muita gente ainda trabalhando nesse programa. Era muito comum antes dos anos 2000 não tem energia. Quando essas comunidades recebem geladeiras e quando pode ligar a energia elétrica, aí tudo muda. Tem toda aquela surpresa que pessoas como nós que crescia com energia já tinham vivido. Mas para quem não tem, era uma sensação. Então a televisão, todo mundo se reunia para ver, a geladeira era compartilhada até cada um poder ter a sua própria. 

Falando do Governo Lula, você ajudou na campanha de 2022. Como foi esse processo para você?

Para mim não foi muito difícil. Eu já me envolvia antes de ser conhecido em campanhas políticas. Eu não via razão para que isso mudasse. Acho que todos nós temos um papel ativo como cidadão que queremos participar das discussões políticas. Devemos participar daquilo que nos afeta. E aí, depois do livro, as pessoas começaram a se interessar pelo que eu pensava também. E a partir daí eu disse que não posso usar esse lugar que eu ocupo que não seja para algo positivo. Eu não vou mudar o meu engajamento político social só porque eu estou neste lugar. Eu vou continuar da mesma maneira. E assim, para mim, isso é muito fácil. Claro que, como pessoa pública, a gente fica mais vulnerável a mensagens de ódio. Mas acho que também já tem melhorado. Fora do calor das eleições, eu acho que as coisas tendem a voltar à normalidade, essa normalidade que não fazia parte das nossas vidas, pelo menos nos últimos anos. O que temos agora, pode não ser o governo dos sonhos, pode não ser o governo maravilhoso, mas pelo menos devolveu a normalidade institucional ao país. Aí a gente se preocupa com os problemas reais hoje, com a nossa desigualdade, com problemas práticos e reais de qualquer sociedade.  E antes a gente viveu quatro anos só para defender a democracia que estava em risco. 

Esses problemas políticos também aconteceram aqui. 

Acho que foi igual aos Estados Unidos com relação ao descrédito das instituições de lançar dúvidas sobre o sistema eleitoral local, um processo muito parecido, muito parecido mesmo. Os Estados Unidos devem ter vivido uma coisa parecida com as últimas eleições. Acho que muita gente que não se manifestava se engajou pedindo para votar. Aqui no Brasil a gente viveu um período bem complicado. Porque o problema não era ser de direita ou esquerda. O Brasil sempre se equilibrou nesses governos de centro direita e de centro esquerda. O problema era que o estado democrático estava em risco mesmo. A gente tinha um autocrata que era o governante, e ele fazia tudo para solapar as instituições, o parlamento, principalmente o Judiciário. Então, muita gente precisou se manifestar nas últimas eleições. Sem contar que o Brasil viveu essa pandemia mundial, mas que aqui repercutiu de maneira muito distinta. O país foi muito negligente. Foi uma coisa catastrófica mesmo. E isso deixou uma marca muito forte nas pessoas. Mesmo assim, não foi fácil. O resultado foi bem equilibrado nas eleições e a vitória foi por uma margem pequena. 

David Martinez is a Brazilian American writer who has lived all over the United States, Brazil, and Puerto Rico. He earned his MFA in creative writing from UC Riverside Palm Desert. His memoir, Bones Worth Breaking, is available for preorder here from MCD/FSG.


 
 
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